ESPERANÇA
O poço cheio de vida, que parece ter vindo de uma aldeia de conto de fadas, contrasta fortemente com o deserto do Saara. O Pequeno Príncipe e o piloto puxam água do poço mágico. A roldana canta e o sol pisca na água trêmula do balde – um poço de luz, uma fonte de esperança que surge da fé. “Estou com sede dessa água”, diz o Pequeno Príncipe. E ele está pronto para beber primeiro. Depois que o piloto também sacia a sede, o protagonista o relembra de sua promessa de desenhar uma focinheira para seu carneiro para evitar que ele coma a Rosa. O desenho é concluído – incompletamente, como se descobriu mais tarde – e o piloto sente que o Pequeno Príncipe tem planos secretos. Ele descobre que o aniversário da chegada do protagonista à Terra está se aproximando – o que é uma oportunidade perfeita para ele retornar à sua Rosa em seu asteroide acima do deserto. Ele partirá em sua jornada perto do poço; por isso, passa a noite lá.
No dia seguinte, o piloto vê o Pequeno Príncipe sentado em cima da velha muralha de pedra (a divisão entre esperança e amor), perto do poço. Ele está conversando com uma serpente venenosa – a mesma que ele conheceu quando chegou à Terra. Seu retorno para casa só é possível com a ajuda ambígua da cobra. É uma provação terrível: ele tem de morrer (ou “Pode parecer que estou sofrendo. Pode parecer um pouco como se eu estivesse morrendo.”) da picada de uma cobra venenosa. O piloto não pode impedir o plano do Pequeno Príncipe. Ele também está se preparando para ir para casa, pois conseguiu consertar o motor do avião (sincronicidade).
Faz muito tempo que as doutrinas da tradição esotérica proclamam o conhecimento da “morte áurea” e o “morrer para a vida”. Isso acontece quando um indivíduo deixa tudo para trás, mata seu eu terreno e parte de seus fardos e correntes mundanas. “Não posso carregar este corpo comigo: é muito pesado!”, diz o Pequeno Príncipe. A morte física é apenas uma analogia para a “morte” de nossa vida terrena, mas as duas podem coincidir. Aqui, a história do Pequeno Príncipe corresponde às descrições dos evangelhos sobre o Mistério do Gólgota. Esses textos fornecem uma descrição horrível da crucificação e do terror encharcado de sangue que levou até ela. É preciso descer bem fundo para tornar a magnífica ressurreição a mais completa e catártica possível.
As últimas palavras do Pequeno Príncipe enfatizam sua responsabilidade para com sua Rosa. Em seguida, a cobra da cor do sol (“com um lampejo amarelo”) fornece seu veneno curativo para o homenzinho que busca deixar a Terra para trás e voltar para casa. Já para o Pequeno Príncipe, por sua inocência e pureza, a picada de cobra é um beijo de amor (segundo Mikhail Naimy). A serpente desempenha um papel semelhante a Judas (e como o nome indica, judaísmo) com seu beijo no Mistério do Gólgota. Sem ele, a ressurreição mística não poderia ser concluída.
O Pequeno Príncipe não só volta para seu asteroide, como também entra no reino do Amor.
AMOR
Anos depois dos acontecimentos, o piloto está em sua casa e conta: “Mas eu sei que ele voltou para seu planeta, porque não encontrei seu corpo ao raiar do dia. Não era um corpo tão pesado…”.
Quando a escuridão (medo, dúvida, tristeza) desaparece e o Sol brilha sobre um Novo Dia no deserto (o corredor da morte da vida) o milagre dos Evangelhos se repete: o corpo do ressuscitado desaparece da Terra. Ao invés de uma caverna, agora se trata do deserto à noite. Aí está um sinal de transfiguração, de “morrer para a vida”.
A ovelha desenhada para o Pequeno Príncipe tem um papel enigmático na narrativa. Quando o protagonista encontra o piloto de madrugada, ele o acorda com este pedido: “Por favor, desenha-me um carneiro!” O pedido surpreendente, vindo em um lugar e hora inesperados, de uma criatura surpreendente, é um chamado para despertar o homem adormecido. Esse chamado o tira de seu sonho, de seus pensamentos, de seus problemas “favoritos” e lhe dá uma nova perspectiva.
O carneiro “trancado” ou escondido em uma caixa é o próprio Pequeno Príncipe – portanto, não é surpresa que esse seja o desenho de que ele gosta, já que o cordeiro é o símbolo mais antigo e relevante de Jesus Cristo (“o cordeiro de Deus”). Assim como o animal domesticado e inocente é oferecido em sacrifício na fé do Antigo Testamento, Jesus Cristo é oferecido no milagre da ressurreição. O Pequeno Príncipe também faz sacrifícios por sua Rosa, que está escondida dentro dele, exatamente como a metáfora do carneiro dentro da caixa. Essa flor mágica trancada em seu corpo é o coração da rosa e a Rosa do coração: a Rosa.
Mas por que o Pequeno Príncipe fica preocupado, achando que o carneiro vai comer sua Rosa quando ele voltar para casa? Outro medo (ou dúvida) junta-se a este, vindo do piloto, já no epílogo do conto. Ele percebe que se esqueceu de colocar a focinheira que desenhou para o carneiro, portanto, agora ela é inútil (a falta de atenção e consciência). Se o Pequeno Príncipe esquecer de fechar sua Rosa na redoma, o carneiro poderá comê-la em um segundo! Neste sentido, o carneiro também é um símbolo duplo: ele é um animal que pode ser domesticado, mas seus dentes ameaçam as plantas comestíveis: até mesmo as que têm espinhos. Enquanto perambulava pelo deserto, o Pequeno Príncipe – como um “cordeiro” – teve medo de voltar a brigar com sua Rosa. Foi por isso que pediu o desenho como escudo protetor. Ele não poderia saber qual seria o resultado de seu auto-sacrifício nem quais mudanças a fase do Amor trará. Ao retornar do deserto, o piloto não passou da fase da Fé – o que significa que, às vezes, ele cai na descrença. Algumas vezes ele fica pensando na questão da focinheira com otimismo; às vezes, com desespero. Então, ele faz a pergunta, que é crítica para muitos, com base em seu estado de espírito:
Olhe para o céu. Perguntem-se: é sim ou não? O carneiro comeu a flor? E você vai ver como tudo muda…
E assim a história inacabada do Pequeno Príncipe nos deixa olhando para o céu e para dentro de nós mesmos. Ela nunca nos abandona: ela nos obriga a refletir sobre ela. Nesse sentido, essa narrativa é semelhante às fórmulas de encerramento dos contos populares que impulsionam os leitores ou ouvintes a utilizarem a mensagem da história em suas vidas – mas claro, internamente, não externamente.
Na história, há uma deficiência quanto ao perigo de a focinheira ser inútil. Mesmo se estivesse funcionando, ainda dependeria da consciência do Pequeno Príncipe colocá-lo no carneiro à noite. Se ele esquecer de fazer isso, o carneiro pode comer a Rosa. Se o Pequeno Príncipe perceber que a focinheira não serve para nada, dependerá também de sua consciência se ele vai se esquecer ou não de fechar a Rosa na redoma. De qualquer forma, sua consciência é crucial. Ainda mais porque ele, de fato, é o carneiro.
Assim como ele é também a Rosa.