Ponha tudo à prova e agarre-se ao que é bom

Ponha tudo à prova e agarre-se ao que é bom

No mundo mutável de hoje, muitas pessoas se sentem apressadas e inseguras. Depressão ocorre em todas as idades, inclusive em pessoas jovens. Muitos procuram uma saída. Para que serve tudo isso? E há uma saída?

Muito já foi dito e escrito sobre o poeta, escritor, cantor e compositor canadense Leonard Cohen (1934-2016); sobre sua voz especial, sua personalidade carismática e o grande número de lindas canções que ele escreveu ao longo de sua vida. Uma vida bem-sucedida e motivo de satisfação, você pode pensar. Mas ele também sofreu de depressão durante toda a sua vida. E passou a vida tentando se curar da dor mental que enfrentava. Alguns dizem ser possível ouvi-la no timbre lúgubre de sua voz, sombrio-melancólico, e em suas letras poéticas e, em muitos casos, conflituosas. Ele mesmo sabia disso; não é sem motivo que seu último álbum é intitulado “You want it darker” (“Você quer mais sombrio”).

Em uma fala de 1964, ele sugere:

Busque de todas as formas concebíveis, pesquise usando sexo, drogas, jejum, mas use tudo como um meio de buscar Deus, de experimentar a perfeição do universo.

A julgar por seu estilo de vida e suas letras, ele fez isso de forma intensa. Nas décadas de 1960 e 1970, jovens começaram a se aprofundar em formas orientais de pensar, descobrindo, entre outras coisas, o “fazer do não fazer”. Isso às vezes era interpretado como um chamado para abandonar todas as atividades. Em uma entrevista posterior [i], ele reconhece que as drogas não oferecem real liberdade, pelo contrário.

Não há muitas pessoas preparadas para começar de novo após a demolição de antigas estruturas; algumas não começam de novo de modo algum, elas param o que estavam fazendo e não fazem nada mais. Eu já vi muitas pessoas se esgotarem por causa de anfetamina e LSD.

Aparentemente, ele foi forte o suficiente para não ser destruído pelo uso de drogas.

Entretanto, havia também formas mais fáceis para ele lidar com sua depressão. Ele se prendia a um cronograma diário fixo, que lhe proporcionava estrutura e estabilidade. Começava com uma xícara de café, tocava o violão por meia hora e depois se sentava à máquina de escrever. E não se incomodava com a bagunça acumulando-se ao seu redor. Mas, para ele, o ponto em torno do qual tudo girava era o coração:

As verdadeiras armas de destruição em massa são os corações endurecidos da humanidade. Se o coração se abranda, então a atitude em relação à vida também se abranda.

Ele repete isso em várias entrevistas subsequentes: começa com o coração, que deve ser abrandado e aberto. Mas isso não acontece sem luta, e nem com nosso livre-arbítrio, o “livre” que ele questiona [ii].

Geralmente, somos acionados por nossos reflexos para reagir, ao invés de agirmos de forma consciente.

Para ele, é evidente que a oportunidade de abrandar o coração e realizar uma mudança real surge somente em tempos de catástrofes de qualquer natureza. E, embora fosse de se esperar que ele tivesse se tornado terminalmente deprimido devido às experiências de sua família com a perseguição na Rússia por volta da virada do século passado e, depois, por suas próprias experiências com relacionamentos fracassados, sua própria imperfeição pessoal, a perda de toda a sua fortuna e afins, ele mesmo não via as coisas dessa forma. Ele se sentia, sim, responsável por sua própria atitude em relação à vida, e usou vários métodos para obter autoconhecimento. Não de acordo com um programa fixo, mas eclético, experimentando todos os tipos de programa para se agarrar ao que era bom. E, especialmente, perseverando em seu caminho.

Eu apenas acho que o meu programa é tentar superar.

Em uma entrevista de 1980, ele diz que a importância do ego é altamente superestimada.

À medida que envelhecemos, descobrimos gradualmente que nosso trabalho é insignificante, nossos corpos são frágeis e nossos relacionamentos são instáveis, portanto, manter o ego sobre esses alicerces é inútil e traz sofrimento. A única coisa sensata a fazer é tornar o ego menos importante. Se o ego conseguir afastar-se, render sua própria vontade à vontade maior que transcende nossa própria vontade, então algo tomará o seu lugar e nos dará algo de maior em troca.

Na mesma entrevista, ele diz, sobre o relacionamento entre os gêneros, que o homem e a mulher não estão aqui sem uma razão, que

nós temos, em nosso interior, uma necessidade de adorar.

A atração entre os gêneros representa algo maior. Ele fala aqui da verdadeira unidade, algo que muitas pessoas anseiam. Mas essa unidade é de uma ordem completamente diferente daquela de uma sociedade utópica. Toda a sua obra expressa um conhecimento de ter caído do maior, da unidade original, para um campo existencial de dualidade, do qual o ser humano deve retornar à unidade. Períodos de adversidades são cruciais por causa do confronto com questões fundamentais da vida, como ele diz na letra de sua música:

Há uma rachadura em tudo. É assim que a luz entra.

Recentemente, descobri seu livro “Book of Mercy” [iii], que ele publicou em 1984, ano de seu quinquagésimo aniversário. O livro consiste em cinquenta poemas em prosa — ele mesmo fala de orações. Esses poemas testemunham um anseio profundo, uma compreensão de ter se desviado, um sentimento de incompletude, um desejo de libertação das limitações dessa vida física presa ao tempo, que tem asseguradas, desde o início, incerteza e instabilidade. O livro inteiro transpira essa percepção, esse discernimento das possibilidades de o ser humano encontrar uma saída nesta vida e experimentar uma existência na eternidade.

Verso 9           Abençoado és tu, que deste a cada homem um escudo de solidão para que ele não se esqueça de ti. Tu és a verdade da solidão, e somente o teu nome a aborda. Fortifique minha solidão para que eu possa ser curado em teu nome, que está além de todas as consolações que são proferidas nesta terra. Somente em teu nome posso resistir à precipitação do tempo, somente quando esta solidão for tua poderei erguer meus pecados em direção à tua misericórdia.

Ele parece falar em nome da pessoa solitária de hoje, tão altamente individualizada que há cada vez menos consenso com as outras. Talvez exatamente por causa disso, ela se torne concentrada na busca pela unidade original e possa somente recorrer ao portal da origem escondido no fundo do coração. Para o Outro no interior de si mesma, teu nome, que está além de todas as consolações que são proferidas nesta terra.

É difícil classificar Leonard Cohen em uma categoria específica em termos de estilo. Suas melodias, letras e seu estilo de canto, às vezes falado, são únicos. Talvez o título “trovador do século vinte” seja o mais adequado. A palavra trovador vem do francês trouver, que significa “encontrar”.

Mas ponde tudo à prova. Retende o que é bom;

como está escrito nos evangelhos. Sua mãe, Mascha Cohen, disse certa vez em uma entrevista: “Leonard está voltando para casa.”

Verso 50         Perdi meu caminho, esqueci-me de invocar teu nome. O coração cru bateu contra o mundo, e as lágrimas eram da minha vitória perdida. Mas tu estás aqui. Tu sempre estiveste aqui. O mundo está todo esquecendo, e o coração é uma fúria de direções, mas o teu nome unifica o coração, e o mundo é colocado em seu lugar. Abençoado é aquele que espera no coração do viajante por sua volta.

De uma entrevista com Patrick Watson:

Eu gostaria de viver uma vida na qual o eu fosse menos predominante. Acho que a única maneira de sair do sofrimento é, de alguma forma, resolver ou atacar esse ponto de vista específico.

Leonard Norman Cohen (21/09/1934 – 07/11/2016) nasceu em Montreal, em uma família judia ortodoxa rica de ascendência lituana. Desde cedo teve grande interesse por poesia e música, em especial pela obra do poeta espanhol Federico García Lorca. Ele aprendeu sozinho a tocar violão clássico. Após escrever vários romances de venda moderada, ele se tornou conhecido como poeta/cantor. Ganhou fama mundial em 1968, com sua canção “Suzanne”. Depois disso, continuou a escrever poesia, compor e cantar quase até a sua morte. Ele é mais conhecido por suas letras poéticas e seu estilo de canto característico. Sua canção “Hallelujah” conta com mais de cem milhões de visualizações nos principais serviços de streaming. Seu trabalho foi traduzido para muitos idiomas.

Fontes:

[i] Leonard Cohen Interview (1980): CBC ‘Authors’ with Patrick Watson (youtube.com)

[ii] Leonard Cohen’s Theories on Life, Democracy & the Future | MTV Full 1993

[iii] L.N. Cohen, Book of Mercy, Canongate 1984, ISBN 9781786896865

 

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Informação sobre o artigo

Data da publicação: abril 24, 2024
Autor: Winnie Geurtsen (Netherlands)
Foto: by visualsoflukas on Unsplash CCO

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