Crise na brecha entre duas eras

Dois caminhos se abrem diante das condições básicas de nosso tempo.

Crise na brecha entre duas eras

O ser humano tem dupla natureza. Nele, dois mundos se encontram. Todos os dias, ele vive no mundo da alma física e recebe impulsos do mundo da alma espiritual. Assim, sua vida corre na área de tensão entre dois processos de desenvolvimento que são extremamente diferentes. A partir do nascimento, o corpo começa a envelhecer. Ele é um sistema vivo e auto-organizador que interage com seu ambiente, coleta experiências e, pouco a pouco, vai enfraquecendo. No nível espiritual-emocional, o caminho vai exatamente na direção oposta. Quando a pessoa segue esses impulsos e os implementa, sua condição interior a rejuvenesce. Na Bíblia, esse fato é assim descrito: “Em verdade vos digo que, se não vos tornardes crianças, de modo algum entrareis no reino dos céus.” (Mateus 18:3).

Dependendo de qual dos dois caminhos considerarmos, crises, doenças e curas passam a ter significados muito diferentes.

“Não há vida sem crise” – essa é a experiência individual de muitas pessoas. As crises são vivenciadas de forma muito diversa. Em nossa época, elas afetam grande parte da humanidade: esse é o resultado de um mundo extremamente interligado. Com o movimento pela paz, o debate ecológico ou o movimento “Vidas Negras Importam” sentimos as reações do mundo inteiro em um tempo muito curto.

 

Sempre em busca de um novo equilíbrio

As crises individuais são doenças do corpo. Hipócrates, um médico grego que viveu 400 anos antes do nascimento de Cristo e que ainda hoje tem grande influência filosófica na Medicina, reconheceu o quanto o conhecimento das doenças e sua cura foi influenciado, em sua época, pela superstição. Observando ponderadamente os sintomas, ele afastou a doença da superstição e iniciou uma arte racional de cura.

Para ele, a doença era o resultado de um desequilíbrio. Ele viu na sintomatologia a tentativa do corpo de restabelecer o equilíbrio de suas funções. A doença era uma expressão dos poderes autocurativos que precisavam ser apoiados.  Portanto, se um pião gira em alta velocidade, semelhante a um corpo que está em plena posse de seus poderes, é difícil desequilibrá-lo. Se a velocidade de rotação diminui, ele começa a cair e é mais facilmente atirado para fora de seu curso. Assim como um pião, o corpo sempre se esforça por conservar um equilíbrio harmonioso. Afinal, ele é um sistema de equilíbrio complexo. Muitas de suas reações auto-organizadoras e autorreguladoras ainda são desconhecidas até hoje.

Consideremos os sistemas de equilíbrio muito simples. Na química, conhecemos as chamadas estruturas dissipativas: são soluções de compostos químicos que interagem entre si e desenvolvem padrões de reação estáveis. Seu equilíbrio e, portanto, sua “saúde” depende da interação com o meio ambiente. Por exemplo: eles precisam de energia para permanecerem estáveis, envelhecem e migram, através de crises, para estados de equilíbrio sempre novos.

Atualmente estamos percebendo que a humanidade, assim como as estruturas dissipativas, construiu um padrão de reação que custa mais energia do que a Terra pode produzir em um estado saudável. O resultado são crises com alterações de padrões – e, assim, todo o sistema busca novos estados de equilíbrio.

A vida significa auto-organização e adaptação a condições vitais em constante mudança. Logo, as crises e os novos equilíbrios vão se substituindo constantemente. Normalmente, o equilíbrio é um estado estático sem mudanças externas. Estas só acontecerão quando for o caso de uma completa dissolução de todas as partículas de matéria envolvidas. Tudo o que vive, desde organismos unicelulares a sistemas planetários, segue um constante processo de adaptação. No caso do universo, a maioria dos cientistas afirma que tudo começou com o Big Bang e que um dia este universo perecerá em “morte por calor”: o equilíbrio absoluto.

Ao observar o ser humano, podemos comparar o nascimento material com o Big Bang, e a dissolução final do corpo material com a morte por calor. No meio dos dois, o ser humano vive sua vida entre a crise e o equilíbrio.

 

Quem cria as novas condições básicas?

Ilya Prigogine descobriu que as estruturas dissipativas mudam quando suas condições básicas são alteradas. Quem muda as condições para a humanidade? Até certo ponto são as próprias pessoas, com seu espírito inventivo e a plenitude de suas necessidades. Fala-se do início do Antropoceno como um novo período na História da Terra. Mas o fator de mudança também pode ser aquela força misteriosa que acaba movendo todo o cosmo.

O físico Max Planck resumiu nestas palavras a conexão entre ciência, filosofia e religião:

Como um físico que dedicou toda sua vida à ciência criteriosa, ao estudo da matéria, estou certamente livre da suspeita de ser tomado por um “espírito de rebanho”. E, assim, após minhas pesquisas sobre o átomo, afirmo: “Não existe essa coisa chamada matéria. Toda matéria é criada e existe apenas por uma força que faz com que as partículas atômicas vibrem e mantém-nas juntas para formar o mais ínfimo sistema solar do universo. Entretanto, como não existe nem uma força inteligente nem uma força eterna em todo o universo – a humanidade não consegue inventar a tão almejada máquina de movimento perpétuo – precisamos presumir que existe um espírito consciente e inteligente por detrás dessa força. Esse espírito é a fonte de toda a matéria.

E ainda mais:

A matéria real, verdadeira, atuante não é a matéria visível e transitória – pois, sem espírito, a matéria não existiria de forma alguma – e o espírito invisível imortal é o verdadeiro. Essa realidade espiritual está no início de toda consideração feita pela filosofia ou pela religião. Para o cientista, muitas vezes ela vem à tona no final de sua pesquisa.

A teosofista e autora Alice Bailey, que viveu mais ou menos nessa mesma época, pensava na ciência mais a partir da filosofia ou da teosofia. Em seu “Tratado sobre os Sete Raios”, ela desenvolveu um ponto de vista com o qual procurou lançar mais luz sobre o funcionamento desse espírito invisível. Dessa forma, ela descreve como os padrões de radiação emergem do transcendental – “a fonte primordial”, como Max Planck a chamou – a partir da qual as mudanças do “espírito do tempo” podem ser explicadas. Esses padrões não são estáticos: eles estão em constante mudança, criando constantemente uma atmosfera diferente, à qual a humanidade deve se adaptar. A adaptação ocorre principalmente através de crises.

De um ponto de vista astrológico, a História humana é dividida em grandes períodos de tempo, durante os quais um padrão básico de radiação permanece relativamente constante. Mal saímos da Era de Peixes e estamos sob as primeiras influências da Era de Aquário.

 

Na brecha entre duas eras

É bem típico de nosso tempo: valores antigos, que eram decisivos para o desenvolvimento anterior, estão perdendo sua força e, assim, novos espaços de valor vão se abrindo. Durante algum tempo, vivemos como se estivéssemos numa “brecha” entre duas eras, na qual nada realmente consegue se sustentar: o “velho” sai e o “novo” ainda não está aqui. Não admira que nosso tempo seja abalado por crises e traga consigo muita insegurança e medo para uma parte da humanidade e uma rajada de fogos de artifício de novas ideias para a outra parte. Mas é bem excitante viver em um tempo assim! Muitos sintomas dessa crise são percebidos como uma doença para a qual precisamos encontrar uma cura eficaz. Na imprensa diária, o termo “sociedade doente” aparece muitas vezes. Um exército de terapeutas está procurando possibilidades de cura nos campos físico, psicológico ou social para doenças muitas vezes misteriosas.

O filósofo russo Alexander Kojève, que deu aulas em Paris nos anos 30, cunhou, em seus estudos sobre Hegel, o conceito de homem como um “animal pós-histórico” vivendo em um “eterno presente”. Ele falou deste tempo como uma “bolha de eternidade”, que caracteriza a atmosfera entre duas eras.

As polaridades que eram típicas de nosso mundo anterior estão se enfraquecendo ou desaparecendo completamente. Na polarização do homem e da mulher, aparece o conceito de gênero. Em muitos lugares, nossa sociedade assume um caráter andrógino.

As polaridades políticas também estão passando por rápidas mudanças. A ideia de Kojève da “bolha da eternidade” deixa claro que em tal fase de transição, na qual as pessoas não estão mais totalmente sob o domínio dos padrões de comportamento coletivo, a eternidade pode mais facilmente ter um efeito sobre elas. O sonho de um desenvolvimento eterno de glória em glória está crescendo. Logo deverá surgir na matéria aquilo que só é possível no reino do espírito. A bolha da eternidade de Kojève é a realidade entre duas eras, que estão lentamente chegando ao fim, uma vez que a natureza alma-espiritual não pode ser realizada no mundo material.

 

Uma polaridade milenar

A dualidade do ser humano fica especialmente mais nítida em uma época como a nossa, quando se revela uma das antigas polaridades. Sentimos com muito mais clareza a enorme tensão entre a alma espiritual e a alma material de nosso ser interior. Como podemos usar essa tensão de forma construtiva?

O aspecto material da alma humana parece estar enfraquecido: sua intensa influência sobre a matéria está inibida. A matéria entra na consciência à sua maneira, sem qualquer história prévia. Quem não veio a este mundo para descansar, e continua a tentar tornar sua vida tão agradável e confortável quanto possível e mantê-la no nível que já alcançou, entrará em crises como as que vivemos hoje. Talvez a causa principal disso seja, inconscientemente, o polo espiritual-emocional do ser humano, pois ele funciona fortemente através do atual espírito da época, mas não entra realmente na consciência enquanto estiver preso ao mundo material. Ele tenta conduzir o ser humano para fora do envelhecimento mental-material, para que ele possa banhar-se na fonte espiritual da juventude.

Portanto, há dois processos de desenvolvimento que vão em direções opostas. O mundo material segue a lei da entropia e da idade. Esse mundo está sempre buscando um novo equilíbrio, sob forças energéticas decrescentes. Do ponto de vista espiritual, o desenvolvimento vai na direção oposta à entropia e permite que a pessoa espiritualmente esforçada se torne rejuvenescida em seu estado interior. Ela vivencia o Espírito como uma fonte da juventude.

Em ambos os caminhos há a constante alternância entre crise e equilíbrio.  Passo a passo deve ser desenvolvido um novo equilíbrio, e as crises intermediárias são fases de cura e realização.

Do lado material, isso leva à realização da transitoriedade de toda a vida; e, na estrutura espiritual, leva o ser humano à consciência da unidade com tudo o que existe e o que não existe.

Curar no sentido físico significa permanecer flexível e adaptável, e fortalecer cada vez mais a tonicidade através de uma atitude sábia em relação à vida. Envelhecimento e morte são partes integrantes da vida. Espiritualmente, isso significa viver a tonicidade que leva à unidade com o divino-espiritual e, portanto, à unidade com todos os sistemas vivos.

A cura, portanto, significa sempre algo diferente, dependendo do ponto de vista e da condição de cada um. De acordo com sua essência mais profunda, é o desenvolvimento de uma tonicidade que permite à consciência comunicar-se livremente entre os dois polos da humanidade, a fim de expressar todo o potencial das ideias divinas.

 

Fontes:

* Bíblia; Mateus 18:3

https://berühmte-zitate.de (Max Planck)

Erich Jantsch, 1979, “A auto-organização do universo: Do Big Bang para o espírito humano”.

Alice Bailey, 1990, “Um tratado sobre os sete raios”.

Ilya Prigogine, 1992, “Do ser ao tornar-se”.

https://www.nzz.ch/meinung/nach-corona-das-ende-der-geschichte-ist-zu-ende-ld.1556521

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Informação sobre o artigo

Data da publicação: julho 31, 2020
Autor: Heiko Haase (Germany)

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