Sobre a cruz e a crucificação
Uma vez mais, a citação nos possibilita compreender o quanto se distanciavam as concepções de ambas as igrejas e, sobretudo, deixa transparecer, de uma forma sutil, que os cátaros não concebiam absolutamente a crucificação de Cristo no sentido literal que impôs a Igreja romana, mas como um trabalho de purificação interior, a morte aos desejos e apetites mundanos, uma renúncia ao egocentrismo.
Os cátaros consideravam que os sofrimentos de Cristo no Gólgota foram muito superiores aos que poderia suportar um corpo humano, pois “sofreu em espírito”; e “teve as torturas da alma, a agonia de Getsêmani. Mas não morreu: um Deus não pode morrer”.
Este é, sem dúvida, um dos aspectos mais antagônicos das duas igrejas. Enquanto a Igreja romana fundamenta a redenção no feito histórico ocorrido uma única vez no Gólgota, para os cátaros a morte de Cristo é, acima de tudo, um acontecimento simbólico que deve se processar diariamente no candidato. Cada homem que aspira à salvação deve morrer para o mundo, para suas vaidades e seus desejos. Pois somente pela morte dos laços terrenos é possível a “ressurreição”, não a ressurreição do Cristo histórico, é claro, mas a do Cristo interior, do Deus pessoal.
Sobre a reencarnação
Os cátaros, por outro lado, acreditavam na reencarnação, como se constata no depoimento de Sibylle Péire perante a Inquisição, onde, referindo-se aos clérigos romanos, diz:
“Que estavam cegos e surdos, uma vez que não viam nem ouviam a voz de Deus por enquanto. Mas no final, ainda que a duras penas, atingiriam a compreensão e o conhecimento de sua Igreja, dentro de outros corpos em que reconheceriam a verdade”Depoimento de Sibylle Péire, citação do livro “As mulheres cátaras”, p. 388..
A expressão “dentro de outros corpos” se refere claramente à necessidade de numerosas reencarnações, antes de poder encontrar a verdadeira compreensão. Portanto, a mensagem dos cátaros, embora à primeira vista possa parecer carente de alegria, era uma mensagem cheia de esperança. Recusava plenamente os castigos de um inferno eterno inventado pela igreja de Roma, e preconizava a salvação de todos os seres humanos, após um inevitável processo de peregrinação e purificação da alma, realizado em diversos corpos materiais.
Face ao exposto, podemos compreender claramente a animosidade da Igreja de Roma face à Igreja do Amor, do Espírito Santo, a Igreja cátara.
A Igreja que foge e perdoa e a igreja que possui e mata
Em um dentre os vários depoimentos efetuados diante dos inquisidores, uma das testemunhas cita as palavras que recorda das pregações de Pierre e Jacques Authié, dois dos últimos cátaros occitanos. No documento, lemos o que o Bom Homem disse:
“Há duas igrejas: uma foge e perdoa, a outra possui e mata. A que foge e perdoa é a que segue o caminho reto dos apóstolos: não mente nem engana. E a Igreja que possui e mata é a Igreja romana”.
O herege me perguntou então qual das duas Igrejas eu considerava a melhor. Respondi que era errado possuir e matar. Então o herege disse: “Nós somos os que seguem o caminho da verdade, os que fogem e perdoam”. Respondi-lhe: “Se verdadeiramente seguis o caminho da verdade dos apóstolos, porque não pregais, como fazem os padres, nas igrejas?”
E o herege respondeu a isto: “Se fizéssemos isso, a Igreja romana, que nos detesta, nos queimaria em seguida”.
Disse-lhe então: “Mas porque a Igreja romana os detesta tanto?”
E o herege respondeu: “Porque se pudéssemos ir por aí pregando livremente, a dita igreja romana já não seria apreciada; de fato, as pessoas prefeririam escolher nossa fé e não a sua, porque não dizemos ou pregamos nada além da verdade, enquanto a Igreja romana diz grandes mentiras.”
Diante do exposto, tentamos ressaltar os aspectos mais significativos da religião cátara, a religião do Paracleto, a religião do Amor.