As diferenças entre o batismo romano e o cátaro
Nos arquivos da Inquisição, encontram-se guardadas as palavras do cátaro Pierre Authié, que, ao pregar na casa da família Péire, em Arques, explicou as diferenças entre o batismo romano e o cátaro com as seguintes palavras:
O batismo da Igreja romana não tem valor – disse assim – uma vez que é feito com a matéria água e porque no decorrer deste batismo são ditas grandes mentiras; perguntam com efeito à criança: “queres ser batizado?”, e respondem em seu lugar que sim, o que não é verdade, enquanto ela, ao contrário, chora. Em seguida, perguntam-lhe também se acredita nisto ou naquilo e respondem por ela que creem e, contudo, não acredita em nada, já que não tem o uso da razão. Perguntam-lhe se renuncia ao diabo e a suas pompas, e respondem por ela que sim, e, no entanto, não renuncia a nada, na medida em que começa a crescer, a dizer mentiras e a cometer diversas obras do diabo… Em contrapartida, nosso batismo é bom, em virtude de ser do Espírito Santo e não da água e por sermos adultos e estarmos dotados de razão quando o recebemos, e por este batismo, nos convertemos em Filhos de Deus…Depoimento de Sibylle Péire, em “As mulheres cátaras”, de Anne Brenon, p. 373 e 374.
Sibelly Péire, em seu depoimento face à Inquisição, citou as palavras pronunciadas por tal bom homem em relação ao juízo que fazia das igrejas católicas romanas: “[…] são as casas dos ídolos, explicou, se referindo às estátuas dos santos que existem nas igrejas como ídolos. E os que adoram estes ídolos são tolos, pois são eles mesmos que produziram essas estátuas, com um machado e outras ferramentas de ferro!”Depoimento de Sibylle Péire, em “As mulheres cátaras”, de Anne Brenon, p. 373 e 374..
Vemos assim que os cátaros, cuja iniciação se realizava observando a mais rigorosa austeridade e frequentemente em cavernas, rejeitavam as imagens dos santos, virgens, e mesmo de Jesus, consideradas sagradas, enquanto eram apenas obras do próprio ser humano.
Para os cátaros, a verdadeira Igreja não era um espaço exterior, consagrado à oração, mas algo que devia ser buscado no imo do ser humano.
No depoimento de Arnaud Sicre, prestado perante o inquisidor Jacques Fournier, são citadas as palavras de um camponês afiliado à causa cátara: “O coração do homem é a verdadeira Igreja de Deus, não a igreja material”Depoimento de Arnaud Sicre perante Jacques Fournier, em “As mulheres cátaras”, p. 384..
Essa citação nos permite compreender que os cátaros tinham a convicção de que o homem que busca seu Deus não deve desviar-se buscando fora de si, mas sim nas profundezas de seu coração. Por outro lado, os cátaros não admitiam que Cristo tivera corpo humano, o que equivaleria dizer que Jesus não era Cristo. Tal concepção fica evidente nas palavras de Raymonde Bézarza, queimada em 1270, que disse:
O Cristo não teve um corpo humano, nem uma verdadeira carne humana. A virgem Maria não foi verdadeiramente a mãe do Cristo, nem sequer uma mulher real. A Igreja cátara é a verdadeira virgem Maria: verdadeira penitência, casta e virgem, que traz ao mundo os filhos de Deus.(Coleção, Dota, 15, p. 57) em A herança dos cátaros. O druidismo, p. 6.
O grande inquisidor do Sabarthez, Bernard Gui, em sua Práctica inquisitionis (p. 238), recordando seus numerosos interrogatórios dos cátaros, escreve:
E quanto à encarnação de Nosso Senhor Jesus Cristo no ventre da bem-aventurada Maria, sempre virgem, eles a negam. Consideram que o Cristo não foi dotado de um verdadeiro corpo humano, nem de uma verdadeira carne humana, como todos os outros homens. Negam que a virgem Maria tenha sido verdadeiramente a mãe do nosso Senhor Jesus Cristo, e mesmo uma mulher real. Dizem que sua própria seita é que é a Virgem Maria, ou seja, a verdadeira penitência, casta e virgem, que traz ao mundo os Filhos de Deus.
Para entender a concepção cátara sobre o corpo de Cristo, deve-se ter em mente que os cátaros distinguiam claramente a entidade Jesus e o Cristo. Para eles, Cristo, como entidade macrocósmica, não teve nunca, nem poderá ter jamais, um corpo humano. Cristo, contudo, pôde sim manifestar-se na personalidade de Jesus e atuar através da mesma, mas de modo algum confundiam o corpo de Jesus com o próprio Cristo.
Da mesma maneira, os cátaros diferenciavam com bastante clareza a Virgem Maria, como mãe de Jesus, da Virgem Maria como Igreja, ou seja, como corpo eletromagnético puro onde poderia acontecer o nascimento do Cristo interior.
É evidente, de acordo com suas concepções, que a Virgem Maria, mulher, embora pudesse ser a mãe de Jesus, não podia nem poderia nunca ser a mãe do Cristo macrocósmico. Em hebreu, os nomes de Maria são: Miriam ou Mariah. O primeiro significa a morte que engendra e a vida que faz morrer; o segundo significa: morte e ressurreição em Deus. Maria faz alusão, portanto, à Mãe Original, ao lado feminino da Palavra feita carne, aos novos éteres puros que se manifestavam no interior da Igreja cátara e por cuja intervenção os bons homens, após um longo processo de purificação, podiam chegar ao nascimento do Cristo interior.
Os sacramentos cátaros
O depoimento de Pierre de Gaillac perante o inquisidor Geoffroy de Ablis nos permite compreender o conceito que os cátaros tinham da comunhão e da comunhão católica romana:
Diziam que o pão posto sobre o altar, e abençoado com as mesmas palavras que o próprio Cristo utilizou no dia da ceia com seus apóstolos, não era o verdadeiro corpo de Cristo e que, ao contrário, é um escândalo e um embuste afirmá-lo, já que esse pão é um pão da corrupção, produzido e oriundo da raiz da corrupção; enquanto o pão a que se refere o Cristo no Evangelho “Tomai e comei etc” é o Verbo de Deus… De tudo isso, concluíram que a palavra de Deus era o pão de que se falava no Evangelho e, por conseguinte, que o Verbo era o corpo de Cristo.Depoimento de Pierre de Gaillac perante Geoffroy de Ablis, em “As mulheres cátaras”, p. 381 e 382.
O texto deixa claras as diferenças que separavam as duas igrejas. Os cátaros rejeitavam categoricamente o milagre da transubstanciação, ou seja, da conversão total do pão no corpo de Cristo durante a Eucaristia.
Os cátaros praticavam dois únicos sacramentos, “a bênção do pão” e o Consolamentum. A bênção do pão não era celebrada no templo, mas nas casas, em cada refeição. Para os cátaros, o “pão”, o verdadeiro alimento santo, era a palavra de Deus, o Verbo, ou, explicado em termos mais atuais, as puras radiações provenientes do mundo divino, pois somente tais radiações espirituais são capazes de transmutar o ser humano natural e despertar, em quem as recebe, o Cristo interior.
No mesmo depoimento nos é relatada a opinião dos cátaros a respeito da ação dos cruzados, ressaltando que sua obra não possuía nenhum valor e não redimia em nada os pecados do ser humano, para em seguida salientar que a cruz que levam os cruzados a além-mar não deveria ser a dos objetos visíveis e corruptíveis, mas:
a cruz que é de boas obras, e de verdadeira penitência, e de boa observância da Palavra de Deus, pois tal é a cruz de Cristo, e quem assim age segue verdadeiramente o Cristo, e se esquece de si mesmo, e carrega sua própria cruz, que não é uma cruz de corrupção.Depoimento de Pierre de Gaillac perante Geoffroy de Ablis, em “As mulheres cátaras”, p. 381 e 382.
(continua na parte 4)