A água não compreende que chove, a flor ignora seu perfume, a estrela desconhece sua luz e o ser humano não sabe que é eterno.
O regato subterrâneo findou em um olho d’água, que morreu no rio, que se perdeu no oceano, que evaporou na nuvem, que desapareceu do céu e condensou como chuva, que caiu na terra e sumiu na infiltração do terreno.
A infiltração da chuva gerou um regato subterrâneo, que surgiu como um olho d’água, que originou um rio, que alimentou o oceano, de onde nasceu a nuvem, que produziu a chuva, que umedeceu a terra e intumesceu a semente.
A semente morreu e dela brotou a árvore frondosa, que se enfeitou de belas e perfumadas flores, cujas pétalas feneceram docemente e abriram espaço para nascerem os frutos, que alimentaram os pássaros e os morcegos, que disseminaram as sementes.
Distante dali uma estrela fez voltas infindáveis na galáxia, chegou ao termo de seus milênios e transformou-se em uma supernova, que desapareceu em uma explosão monumental. Da poeira cósmica resultante nasceu uma nebulosa, que gerou belos e misteriosos corpos celestes.
Perto de tudo, do regato, da árvore e da estrela, a grande transformação caminha desde que o tempo nasceu, pois todos seguem os ciclos insondáveis das mutações da natureza, em que a morte é parte inseparável da vida, bem como a vida é sequência inevitável da morte.
Nós bebemos a água, comemos os frutos e recebemos o calor e a luz da estrela e, assim, somos feitos dos mesmos materiais que constituem nossos irmãos da Criação. Por que não participaríamos dos mesmos ciclos de transformação?
Fazemos parte do caprichoso bordado que o Eterno faz e refaz no tecido do espaço-tempo, que chamamos de realidade, cujo fio que tece a trama é a própria consciência. No bastidor da eternidade surgem regatos, flores, pássaros e constelações e, quando aparece o ser humano, o Eterno vê a sua imagem refletida e sorri.
Nas diversas gradações de estados de consciência, a água não compreende que chove, a flor ignora seu perfume, a estrela desconhece sua luz e o ser humano não sabe que é eterno.
A água circula no planeta há milhões de anos, e o seu ciclo é o conjunto de suas partes. No entanto, caso essas partes decidissem se desconectar, as nuvens poderiam se recusar a chover, os rios deixariam de alimentar os mares, que por sua vez negariam a evaporação. O ciclo da água se desfaria, porque a perenidade pertence ao Todo, mas não às suas partes isoladas.
Caso as flores recusassem o fenecimento, os frutos não surgiriam; é necessário que os frutos e as sementes morram para que uma nova árvore possa nascer. Uma árvore que ambicionasse a eternidade e recusasse a transformação fatalmente deixaria de existir, pois a árvore existe como espécie e não como indivíduo.
Para os seres humanos o processo evolutivo foi longo até o surgimento de uma consciência de si mesmos, uma autoconsciência, o que nos difere de outros animais, riachos, árvores e estrelas. Ao voltar-se para si mesmo, no entanto, a autoconsciência paulatinamente se transformou em egocentralização, o que é uma característica da sociedade humana moderna.
O ser humano é uma fração indissociável do Todo, mas sua consciência lhe diz que ele está desconectado. Intuitivamente ele percebe que a eternidade pertence ao Todo, mas não às suas partes isoladas e, assim, nos estratos mais profundos de sua consciência ele compreende que não pode ser eterno em si mesmo.
“Esse eu voltado para dentro, e isolado, esse pseudo eu defende-se pertinazmente da morte, da desintegração e da transcendência, por um lado, e por outro aspira a ser e faz de conta que é o centro do cosmos, onipotente e imortal… O terror da morte é inerente à percepção do eu separado, ao sujeito separado…”. Essa percepção de isolamento, no entanto, é falsa, pois “não há nenhuma entidade radicalmente separada em parte alguma – a fronteira entre o sujeito e o objeto é, em última análise, ilusória.” [2]
Respiramos oxigênio que é parcialmente produzido por uma pequena alga verde diatomácea que vive nos oceanos. Esse oxigênio é transferido pelos alvéolos pulmonares à circulação do sangue e alimenta cada uma de nossas células, tecidos e órgãos, tornando a vida possível. Dessa forma, mantemos um relacionamento intrínseco e profundo com essa alga microscópica. Não percebemos que estamos inequivocamente conectados à diatomácea e igualmente aos mares, aos nutrientes levados pelos rios que propiciaram sua reprodução, às florestas e matas pelas quais o rio serpenteou e ao sol que promoveu a fotossíntese. Pertencemos, indubitavelmente, ao Todo.
Assim, é necessário que o Homem transcenda a ilusão da separatividade e compreenda que tudo é transformação. Podemos, dessa forma, seguir o ciclo de nossa existência, palmilhando a espiral ascendente de transformação da consciência, cujo fim não é possível discernir ainda. Nesse ciclo, olhamos corajosamente para tudo que nos isola, como preconceitos, vaidades e onipotência, permitindo que a luz da compreensão os dissolva, como a névoa que se esvai ao sol nascente.
E, um dia, poderemos abraçar a grande transformação que conscientemente fizemos e dizer: “Vamos…”
Referências
[1] ANDRADE, Fernando Teixeira. O medo: o maior gigante da alma. Disponível em O medo: o maior gigante da alma (Fernando Teixeira de Andrade) – Imprimir este texto – Crónicas – Luso-Poemas Acesso em 05 Fevereiro 2024.
[2] WILBER, Ken. O Projeto Atman: uma visão transpessoal do desenvolvimento humano. São Paulo: Editora Cultrix Ltda., 1996. 219 p.