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“Quando todos sob o céu afirmam que o belo é belo,
o feio se manifesta.
Quando todos pensam saber tão bem o que é bom,
o mau se manifesta.
O ser e o não ser geram um ao outro.
O difícil e o fácil produzem um ao outro.
O comprido e o curto provocam mutuamente
as diferenças na forma.
Por isso, o sábio
faz do não fazer sua tarefa;
ele ensina sem usar palavras.
Quando a obra está terminada,
ele não se prende a ela;
e justamente por não prender-se a ela,
ela não o abandona.”Tao Te King, capítulo 2
Quem vive na luz não tem sombra, sabe reconhecer o que não está na luz porque vê no escuro. Quem vive na luz vê o que a luz mostra na sua tonalidade, sem nuances, em sua plena realidade. Tem todas as coisas em si, é uno com tudo e com todos e, porque não exige nem recusa, não sofre nenhuma perda.
Quando dizemos “bonito”, nós separamos. Se dizemos “não é bom” e assim pensamos ou sentimos, delimitamos. E se dizemos “alto”, criamos o baixo. O que é separado cria uma sombra. Não desaparece se o excluímos, pois nada pode desaparecer. Para onde poderia desaparecer? Não é tudo uma unidade? Mas o excluído, então, se expressa de outra forma: como deslocado, escravizado. É uma dualidade manifesta na qual os opostos, a polaridade, não são vistos e aceitos como os dois polos da realidade de uma e mesma vida.
Quem separa por falta de aceitação perde contato com o que não aceita; contudo, o que não foi aceito continua existindo, e é carregado consigo como uma sombra. Ele identifica sua personalidade com o que aceita, e isso se torna uma “imagem” de si que não corresponde à realidade.
Considerando-se justo, ele exclui definitivamente a possibilidade de ser injusto. Sua própria retidão é, então, julgada de modo muito elevado, e surge um julgamento de valor que calcula e pesa tudo a favor ou contra. Assim, ele se coloca deste lado e não do outro, porque uma coisa lhe parece boa e a outra não. A tendência de se afastar de um polo torna-se um hábito que logo leva à escravidão e se ancora em uma parte da consciência, distorcendo a realidade.
Tudo o que não queremos aceitar em nossa identidade torna-se, para nós, uma sombra, não na luz, não na vida, não na realidade, não na verdade — mas ao lado delas. Essa sombra surge diretamente das imagens mentais criadas por nós, imagens que nosso “eu” imagina, mas que desconhecemos.
Chamamos de sombras todas as possibilidades rejeitadas da realidade que o ser humano não vê ou não quer ver. A sombra é seu maior perigo porque ele a possui sem saber. Tudo que o ser humano esconde inconscientemente e o que mais teme encontrar em si ele projeta como um mal anônimo no mundo exterior. Assim, o que uma pessoa mais teme ver em si a mantém em constante movimento na maior parte do tempo e a torna sempre medrosa e na defensiva. Ao mesmo tempo, ela não sabe e não tem consciência de que o medo surge da rejeição da sua própria realidade.
O ser humano está envolto nessa cegueira, nesse não ver. Até a morte ele estará preso às suas identificações e projeções e será seu escravo. Essas projeções e identificações demonstram exclusão e mostram a sombra, o que significa que o que não queremos aceitar em nós mesmos transferimos para fora para vê-lo e combatê-lo do lado de fora. Então já não temos nada a ver com isso, porque nos "livramos" dele. Mas isso é uma ilusão, porque o “eu”, formado apenas por aquilo com que se identifica, é responsável por nossa separação de toda a existência.
Nosso ego carrega essa exclusão como uma sombra ao nosso redor. A sombra é escura, dificultadora, incita medo e, como uma corrente, prende o prisioneiro. Porém, a sombra nunca existe sozinha, ela está conectada à luz da realidade e, para desaparecer, precisa retornar à luz. Deve tornar-se luz. Portanto, o buscador da luz sempre encontrará sua própria sombra e, primeiro, deverá transferir sua própria sombra para a luz. Tal pessoa terá que aceitar o vil, assumir o excluído, libertar o que não está livre, vivendo ambos os polos dentro de si, não só em espírito, mas com toda a sua alma e todo o seu corpo. De fato, mesmo quando a menor noção do bem ou do mal permanece em nós,
definhamos devido à nossa sombra. A sombra nos leva à morte, que é a sombra da vida. A sombra nos prende firmemente, não nos solta, impede-nos de viver a vida em sua plenitude. Além disso, mesmo com a menor ideia de sombra, não nos encontraremos na plenitude da luz, nem na plenitude da vida, nem na unidade. A morte, a sombra e o mal estão tão intimamente relacionados quanto possível e são o lado escuro do bem, e, portanto, não têm diferença.
Carregamos a imagem da sombra com tudo que não consideramos bom e chamamos de mau. O que não consideramos bom não queremos ver, reprimimos, suprimimos, e o que reprimimos expulsamos de nossa consciência. Empurramos para o inconsciente tudo que não queremos e não gostamos; e então nada temos a ver com isso. Nada sabemos disso. Mas tudo está lá. Como uma realidade obscura que vem constantemente à tona, como uma tensão nas áreas do inconsciente. Essa tensão espalha seus tentáculos para fora e, onde percebemos o mal e o indesejado, lutamos contra eles. Essa ação é uma necessidade para nós. Parece não só justificável, mas mesmo ética e moralmente necessário combater e exterminar essa sombra, esse mal, onde e como se manifeste. E o ser humano que o vivencia não vê que está lutando contra seu próprio subconsciente, sua própria sombra e sua própria repressão.
Não é o mundo que é o mal, mas a perspectiva de quem se identifica com o bem e luta contra o mal. Os olhos do solitário só podem perceber separação e divisão. O ser humano está sob o feitiço de uma luta tão necessária, ao que lhe parece, contra o mal, que não percebe que todos os seus esforços são inúteis e devem fracassar constantemente, porque o bem e o mal são dois aspectos da unidade e, portanto, dependem um do outro para continuar a existir. O bem vive no mal e o mal vive no bem. Quem conscientemente apoia o bem, inconscientemente alimenta o mal. Lutar contra o mal permite-nos superestimar o bem. Muitas vezes, com essa superestimação, adornamos a hipocrisia, a aparente bondade, com a qual orgulhosamente procuramos disfarçar nosso nada e nossa irritabilidade. Não se trata, portanto, de um bem que só pode ser bom porque só serve à unidade, mas de um bem que exclui e, portanto, não pode ser bom porque causa tensões e conflitos.
O difícil auto exame de consciência que todos devem fazer não significa grandes perdas, sacrifícios, mas é sempre um confronto com sua própria sombra. Ele envolve a sensação deprimente de enfrentar tudo o que um dia se rejeitou. O rosto e as mãos são as únicas partes expostas do corpo. Olhar alguém ou algo no rosto significa vê-lo descoberto, vê-lo como ele é. Significa verdadeiramente perceber e compreender. Aceitar com as mãos limpas significa já não recusar, mas unir o separado, reconciliar os implacável. Então o amor será aceso, e sem amor não há vida.
Aceitar o mal como a própria polaridade e dualidade requer coragem. Coragem é força. Porém, é coragem sem luta, é calma. Significa adquirir o tipo de coragem que permite perseverar em equilíbrio, sem oscilações. Sim, nessa jornada você ficará abalado, perturbado e assustado. Sua paz e apoio serão tirados de você e, com a perda desse suporte, você encontrará seu ego, que criou esse fundamento de paz como um substituto, como uma defesa contra o que não aceitamos. Somos escravos de sangue desses substitutos que nos impedem de ver a verdade. Durante algum tempo, esses substitutos nos dão satisfação. Eles nos oferecem uma liberação no tempo e na dualidade e, como estamos temporariamente libertos, não buscamos mais nada. Satisfazemos nossa fome, estamos saciados, mas não há realização real, não há liberdade real. A tensão vibra sob a pele, em cada fibra, como uma pressão interior que intensifica as reações de evitar e reprimir, e então já não pode ser descarregada, exceto mediante violência, ansiedade, agitação e vícios. A tensão também se manifesta de outro lado, na direção oposta: quando se trata da luta por ideais, humanismo, virtude etc., porque tensão é energia e energia leva a movimento. A energia deve fluir, e com a ajuda da energia podemos concretizar nossas ideias, dar-lhes forma e expressá-las.
O buscador da luz busca vida, busca apenas luz. A luz está em toda parte, dentro e fora. O buscador da luz busca apenas uma conexão, uma conexão com a luz. Não é detido por nenhum outro vínculo: dinheiro, poder, influência, conhecimento, dignidade, satisfação, comida, misticismo, imagens mentais religiosas, imagens mentais comuns etc.. Cada evento é para ele uma oportunidade, um convite à verdade. Através de cada evento, através de cada pessoa, podemos nos conhecer, podemos observar nossas reações como num espelho.
Isso é amor: transformar a própria sombra em luz. Confrontar o próprio eu com sua exclusão, de modo que finalmente toda identificação e projeção desapareçam. Isso é ao mesmo tempo o fim do eu, o fim da sombra. Então a realidade, o verdadeiro eu, preenche a forma, o corpo. A forma, então, conecta- se com a fonte do amor e vê a mesma possibilidade de amor em todas as outras formas. É por isso que Lao Tzé diz: o iluminado completa a sua vida porque abarca, em si, tudo na unidade.
Esta é a mensagem de nossa era. Esta mensagem vibra nos éteres de nosso planeta; é o impulso da vida. Deixe toda dualidade morrer. Na morte nada resta do velho, nada! Como já nada resta, há apenas vida, luz, sem sombra, sem morte. Já não se fala de ego-personalidade, o ser humano elevou-se à unidade. A alma recém-nascida e a luz são uma, já não há sombra.