Matéria e memória
Na medida em que você lê, as palavras são gravadas na memória de trabalho do seu cérebro. É uma memória de curto prazo. As palavras o tocam. Você quer pensar nelas. As palavras desenham um rastro na sua memória. A informação é armazenada em uma rede de neurônios, o que significa que ocorre uma mudança temporária na realidade física do seu cérebro. Isto requer energia. O rastro de memória é tão volátil que consciente ou inconscientemente a energia deve fluir para sustentá-lo. A forma permanente da informação parece bastante disforme e dispersa.
O rastro de memória é uma forma concentrada temporária, uma combinação de matéria para reter o conhecimento. Um livro impresso e encadernado também é uma reorganização da matéria – com tinta e papel – em uma forma que contém informação. Os livros impressos estão se tornando datados. Os e-books, ainda mais efêmeros, são armazenados em chips de memória de acordo com uma reorganização eletrônica temporária. Baixar arquivos e escrever requer energia.
E o tempo flui através de tudo isso. Esse fluxo determina se falamos de armazenamento temporário ou permanente. Ele é a chave para a nossa memória. Consciência e memórias são influenciadas pelo fluxo do tempo.
Resistência à mudança
Você está em um vagão de metrô superlotado. Pela janela, vê flashes de luz e escuridão se alternando no túnel. De repente, o trem freia e você ouve rangidos enquanto é empurrado para a frente, até ser contido por outros passageiros que balançam e se movem como você. Aos poucos, cada um retoma seu lugar. Esse efeito foi descrito por Ernst Mach – o físico da velocidade do som – da seguinte forma:
Quando o trem balança, são as estrelas que fazem você cair.
Isso é conhecido por Inércia.
Viajando juntos no trem, nos movemos a uma velocidade de 80 km por hora. Se os freios forem acionados e o trem se desacelerar, nosso corpo tenderá a manter inalterado seu movimento. Nosso corpo é permanentemente atraído por todos os corpos celestes e pela Terra. Se nenhuma outra força for exercida sobre nós, nosso movimento não será mudado. Isaac Newton expressa isso como: “F = ma”, onde “F” representa a força, “m” representa a massa e “a” representa a aceleração ou mudança.
Minha massa não é apenas uma coleção de moléculas, matéria. É antes de tudo uma resistência à mudança quando uma força é aplicada ao corpo. Ernst Mach indica que estamos conectados puramente como matéria a todas as outras matérias do universo.
Matéria em movimento
Nós, humanos, temos experiência em lidar com a inércia. Se você quiser tirar água de uma banheira, sabe que precisa colocar sua mão na água e iniciar movimentos para trás e para frente, primeiro lentamente, depois um pouco mais depressa, até sentir que atingiu exatamente a frequência certa: a água se move completamente com sua mão. Então, você amplia os movimentos e uma grande onda sai para fora da banheira.
A mesma coisa acontece se você quiser empurrar um carrinho pesado para além da soleira: você o balança para frente e para trás algumas vezes, sente a frequência e, em seguida, amplia o movimento e espera que o veículo role sobre a soleira. A frequência encontrada é chamada de frequência natural. Com ela, é possível transferir energia máxima para o objeto em movimento. Ocorre uma ressonância entre quem faz o movimento e o que está sendo movido.
Inércia herdada
Um resquício de memória no cérebro, uma possibilidade de memória. Uma criança nasce com memória pregressa de ser levada pela eternidade. Ela projeta seu desejo por esse deus condutor em sua mãe, garantia da sua sobrevivência. A mãe é humana e, portanto, incapaz de atender a tão elevada expectativa. O desapontamento, experimentado como dor, deixa um vestígio de memória dentro das células do corpo da criança. Com a felicidade de ser nutrida, cuidada e amada acontece o mesmo. Esses traços serão mais difíceis de decodificar mais tarde como uma memória. No entanto, eles determinam a personalidade do ser.
Pelo sangue e DNA, somos herdeiros de nossos antepassados, parte de nossa árvore genealógica. Nosso passado, o conjunto de memória coletiva de toda nossa história de existência, determina nosso ser atual. E a vasta maioria dessas influências trabalha inconscientemente.
Nosso crescimento ocorre com base em nosso patrimônio, em nosso passado. Crescemos em uma família, comunidade e sociedade que têm preceitos, crenças coletivas e leis que indicam como devemos nos comportar. Surgem conflitos entre nosso interior: somos conduzidos a certa maneira de fazer as coisas, por um lado, e as demandas sociais por outro.
Outro vestígio de memória é formado pela dor de se estar aprisionado. Como uma criança em guerra, mas ainda pior por causa de nosso desejo de mais liberdade. Qualquer que seja a coloração cultural política da sociedade na qual alguém cresça, sua tendência fundamental é sempre conservadora. Regras, crenças e leis não querem ser alteradas.
Eu em um mundo lento
Encontro-me, por assim dizer, em um vale rodeado por colinas e montanhas de forças reacionárias, de trilhas ativas na memória, pressões sociais e obrigações. Todas essas encostas formaram-se no passado, mas me sinto sempre atual. Algo em mim me empurra à autorrealização e, portanto, a escalar a encosta da montanha. Posso mover-me ou tenho que encontrar uma forma de ser movido por uma força mais elevada?
Um vale parece um pouco com uma banheira… deve haver uma ressonância entre mim – com a minha massa como medida da minha inércia – e o que me toca? E o que é que me toca?
Mudança constante e a busca do ser
Nosso mundo é definido pelo tempo e pelo espaço. Ao longo do tempo, a maioria dos processos oscilam entre dois extremos, permitindo-nos experimentar a dualidade dialética, tal como luz e escuridão. A terra gira e, portanto, a luz e a escuridão alternam-se na sua superfície. Toda vida aqui nasce, cresce rapidamente e morrerá no devido tempo. Porém, o ser humano é diferente. Nele há um elemento de eternidade – embora para nossa consciência seja apenas uma pré-memória. Esse elemento eterno está associado a um corpo material entre a concepção e o nascimento. A matéria é cíclica, no máximo move-se para trás e para a frente, lenta, mas seguramente. Da interação das duas formas de ser, destas formas de movimento, nasce a consciência e uma resistência à mudança que pode ser chamada “memória” ou “capacidade de aprendizagem”. O desejo de permanecer vivos leva-nos a pensar na melhor maneira de fazer isso. Infelizmente, lembramo-nos mais facilmente de experiências negativas do que de experiências positivas. Como se a felicidade não mudasse as nossas vidas para melhor.
A inércia no caminho para o ser
No nosso íntimo, somos seres eternos, embora temporariamente deuses mortais com um profundo anseio por valores eternos: continuar a viver, felicidade eterna, amor perfeito, permanência, conhecimento abrangente. A nossa consciência é parte da resistência entre movimentos eternos e movimentos fictícios da dialética, que é uma questão de nossas identificações. Identifico-me com o vir a ser eterno ou com a autoimagem deste mundo de opostos construído a partir da memória?
Abandonar este último é mais difícil do que parece, é lento. Com base nos rastros de memória das nossas experiências de vida, escrevemos e editamos constantemente a história em que nós próprios assumimos o papel principal de herói. Isso dá à nossa psique uma massa muito grande e, portanto, uma inércia igualmente grande, resistência à mudança e incapacidade de se mover e acelerar em um nova direção. F = ma, com “m” imaginariamente grande. Como a aceleração ocorre no espaço de consciência, esse grande “m” imaginário, o fator determinante, é uma massa de ideias. Contém nossas experiências conscientes, nossos registros inconscientes, episódios reconstruídos na nossa história de vida e, portanto, a nossa autoimagem em desenvolvimento, o conteúdo do nosso sangue, bem como imagens e opiniões herdadas de nossos antepassados, ideias coletivas da nossa sociedade, e assim por diante. A soma de tudo isso nos dá muito peso no espaço das ideias. Tal coleção de imagens – o museu da Sra. X ou do Sr. Y – é sustentada com energia emocional e pelo poder criativo do nosso pensamento.
Eternidade
Suponhamos que o nosso núcleo, o ser eterno, queira expressar-se, manifestar-se. Em princípio, só a identificação precisa ser transferida do nosso “eu” imaginário para esse verdadeiro “eu”. Na prática, começa com a aceitação de que o núcleo está lá e é mais importante do que qualquer outra coisa. Temos que acreditar nisso. Isso faz com que se inicie uma abertura em todo o sistema, o telhado do nosso museu deixa entrar a luz. Podemos ver a nossa coleção de imagens nessa luz, em admiração e em aversão. Percebemos como nos identificamos com determinada seleção de obras no nosso museu. Com base na observação, podemos questionar a identificação e, se necessário, abandoná-la em autorrendição ao nosso núcleo. Entrega de nós próprios a nós próprios.
Podemos também aprender que acumular imagens é inútil: traz muita energia ao museu e é um caos que torna sua visualização difícil. Há muito a aprender nesta desaprendizagem. Gradualmente, encontramo-nos com outra postura, adotamos nova atitude em relação à vida. Agora assuma que, a partir dessas descobertas, o nosso núcleo, o ser da eternidade, queira expressar-se em nós dessa maneira!
Referência:
Este artigo foi publicado originalmente na Revista Pentagrama de 2019, nº 3.