“Estou aqui, então!”: Caminhadas e experiências com a alma da paisagem – Parte 2

"Há dois planos para cada dia, o meu plano e o plano do mistério", dizem os inuits.

“Estou aqui, então!”: Caminhadas e experiências com a alma da paisagem – Parte 2

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Uma confiança primordial

Na conexão intensa com os espaços interiores do mundo, tudo o que é necessário está disponível no momento certo. Tudo o que me é devido, é fornecido a mim, por assim dizer, por si mesmo. Eu não tenho que fazer esforço. Tudo está disponível. A vida torna tudo disponível se eu estiver aberto e permeável a ela. Visto dessa forma, tudo é incrivelmente simples!

Talvez isso soe um pouco eufórico e onírico. Em contrapartida, gostaria de afirmar que a ligação íntima com a natureza, que a empatia com a floresta, permite que essa confiança primordial se torne uma experiência real. Essa confiança quer nascer em nós e para isso cria emaranhados, resistências, adversidades com as quais nos esbarramos, por meio das quais podemos crescer e amadurecer.

Um exemplo concreto disso: perdi-me durante uma caminhada na Floresta Negra em uma vasta área florestal. Todos os caminhos pareciam iguais e meu suprimento de água estava acabando. Quando meu aplicativo de caminhada falhou devido à baixa carga do celular, fiquei sem orientação, quase sem comida e, o pior de tudo, sem água. À medida que escurecia e não havia mais caminhos, fui simplesmente forçado a me “entregar” à floresta com confiança. Montei minha rede em algum lugar no meio da mata. Assim que a última corda foi apertada, o saco de dormir foi desenrolado, ouvi um riacho suave borbulhando 10-15 metros abaixo do meu lugar de dormir. No meio dessa área de floresta inimaginavelmente grande, uma fonte estava borbulhando do solo nesse ponto exato, um riacho claro de água pura.

A cada momento, tudo é provido… e tanto mais quanto mais podemos nos afastar de nós mesmos e respirar sem medo.

Rede de Indra

“Há dois planos para cada dia, o meu plano e o plano do mistério”, dizem os indígenas da Groenlândia, os inuits. Eles mantiveram a consciência de que em cada momento estamos intimamente envolvidos em uma totalidade. Tudo nessa totalidade vive, respira e tece na grande teia que nos afeta e que chamamos de vida.

No hinduísmo e no budismo, essa rede de totalidade é chamada “rede de Indra”. Diz-se que a divindade Indra uma vez teceu uma rede, e que cada nó nela é uma joia polida em muitas superfícies. Cada joia reflete todas as outras nesta rede. Cada diamante representa um ser individual, uma célula, um átomo, e está intimamente ligado a todas as outras joias do universo. Uma mudança em uma joia significa uma mudança em todas as outras joias. Assim, quando um movimento, uma mudança de consciência ocorre em um ser humano, isso é percebido e refletido nos seres vivos ao seu redor.

Durante minhas caminhadas meditativas, experimento constantemente o trabalho da rede de Indra de uma forma muito concreta. O silêncio da floresta provoca uma maior abertura e permeabilidade para o ser mais íntimo. Nessa abertura, nessa irradiação de dentro, surge uma qualidade completamente nova dos olhos. Conheço outras pessoas. Em uma fração de segundo – geralmente um breve olhar nos olhos da outra pessoa – é decidido se haverá um encontro, se uma conversa será iniciada e aprofundada. Assim, no meio da floresta, na orla da floresta ou na aldeia mais próxima, encontro silvicultores, caçadores, proprietários florestais, cortadores de árvores, pastores, jardineiros, agricultores, curandeiros, teólogos, prefeitos… a lista poderia continuar infinitamente.

Diálogos espontâneos

Todos os dias, diálogos espontâneos com pessoas que me são completamente estranhas surgem da magia dos olhos. Eu dedico muito tempo a essas conversas. Às vezes são 30 minutos, às vezes são 2 dias. Eu tento ouvir e descobrir o que move minha contraparte. Eu forneço a eles um espaço mental no qual eles podem se expressar, no qual eles se sentem percebidos. Eu me conecto com as diferentes perspectivas e motivações da pessoa com quem estou falando. Em uma floresta de abetos[1] morrendo, por exemplo, cortadores de árvores, silvicultores, caçadores e proprietários florestais têm motivações e perspectivas muito diferentes sobre o que está acontecendo. Dessa forma, os padrões gerais tornam-se discerníveis.

A alma da paisagem agora fala consigo mesma, por assim dizer. Ela se expressa por meio de um de seus elementos – e eu, como elemento solidário, posso refletir outras perspectivas, outras motivações do tecido geral.

É simplesmente maravilhoso observar como, ao vagar pelo meio da alma da paisagem, encontramos sempre exatamente aquelas pessoas e circunstâncias que correspondem à nossa própria ressonância. A rede de Indra pode ser vivenciada concretamente todos os dias.

Essa rede é um grande mistério.

Frequentemente encontro pessoas que são completamente estranhas para mim e, três dias depois, conheço outras pessoas que são parentes ou conhecidas delas. Às vezes, posso recomendar certos médicos e curandeiros a pessoas que não conheço, que “por acaso” me conheceram há alguns dias, e que podem ajudar essas pessoas em suas doenças graves. Muitas vezes, meus parceiros de conversa e eu percebemos em um diálogo muito profundo e tocante sobre a vida que, embora nunca tenhamos nos encontrado antes, nos “conhecíamos” nas profundezas de nosso ser; de fato, estamos familiarizados um com o outro; de fato, temos quase ” esperado” por este momento de encontro.

Essas experiências me inspiram, me fazem “saltar” de felicidade na minha trilha de caminhada. Fazem-me sentir: existe esta rede que se estende entre mineral, vegetal, animal e humano. Tudo é cuidado nesta rede. Podemos experimentar uma plenitude que nos fornece a energia e a criatividade de que precisamos em todos os momentos de nossas vidas.

E cada nova experiência afeta toda a rede.

Alma individual, alma da paisagem, alma do mundo, o cosmos – estão todos intimamente entrelaçados. Eu sou uma pequena, mas não insignificante, parte disso, e também uma das joias.

Estando (ou sendo?) presente

Acredito que esta presença, este estar presente essencial, esta abertura, simplicidade e dedicação à vida são da maior importância no tempo que temos pela frente. São qualificações futuras para a nossa jornada de vida.

Há 15 anos, Hape Kerkeling deu à descrição de sua peregrinação no Caminho de Santiago o título: “Estou fora, então”.

Passei a perceber minhas caminhadas não apenas como um lazer, mas como uma “viagem obrigatória“, onde me deixo guiar na rede de Indra até certos nós, onde minha percepção, minha escuta atenta e meu apoio são necessários:

Assim, o lema da minha jornada de vida é: “Estou aqui, então!”.


[1] É uma planta do género Abies da família das Pináceas de que se conhecem cerca de cinquenta espécies arbóreas que se distribuem nas regiões frias do hemisfério norte. (Fonte: Infopédia)

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Informação sobre o artigo

Data da publicação: novembro 3, 2021
Autor: Burkhard Lewe (Germany)
Foto: MariaD42530 auf Pixabay CCO

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