O nada atua apenas por meio de sua atração, como um poder irreal invisível e, devido aos temores humanos, recebe uma existência emprestada. O mal surge nas almas que estão presas à matéria e enfraquecidas pela atração do nada.
Cruzada contra os cristãos
Blanca era a senhora de Laurac, um enclave feudal no Lauragais, uma região considerada o epicentro da heresia durante a Inquisição. Ela era uma devota cátara (uma crente) que, viúva em uma idade avançada, mudou-se com sua filha mais nova para uma das “casas” do vilarejo e viveu uma vida de Boa Mulher após sua iniciação.
Como uma Boa Mulher, ela tinha os mesmos direitos e deveres de seus irmãos homens. Ela poderia se tornar a Prioresa da Casa, poderia pregar e realizar todos os ritos, e também conceder o Consolamentum. Apenas o ofício de bispo era reservado aos Bons Homens.
Blanca tinha cinco ou seis filhos, todos os quais se tornaram cátaros devotos. Uma de suas filhas e seus respectivos filhos foram envolvidos em um dos primeiros grandes julgamentos da Inquisição, em 1238. Uma outra filha, Guéraude, vivia em Lavaur (Lauragais) e, quando o local foi atacado durante a Primeira Cruzada, em 1211, seu irmão, um poderoso senhor occitano, tentou socorrê-la. Ele foi cruelmente assassinado, juntamente com seus 80 cavaleiros. Guéraude é citada nas crônicas da Cruzada como Na Geralda. Ela foi atirada em um poço e apedrejada até a morte pelos soldados da Cruzada. Nesse ataque em Lavaur, 400 Cátaros foram queimados na fogueira.
Em 1244, as piras foram acesas no Castelo de Montségur, o último retiro da Igreja dos Bons Homens. Apesar desta derrota devastadora, Pierre Authier (notário do então conde de Foix), seu irmão, seu filho e alguns ousados companheiros permitiram um brilhante ressurgimento do catarismo no condado de Foix e na região de Toulouse, até que também eles foram apreendidos pela Inquisição e queimados em 1309/1310. O último Bom Homem, G. Bélibaste, foi queimado em 1321.
A filosofia do catarismo
A espiritualidade cristã no ano 1000 era completamente dualista. O mundo era visto como o palco de um conflito entre duas forças opostas, a do bem e a do mal. Os monges e cavaleiros eclesiásticos eram considerados bons, e os incrédulos e hereges, maus. Acima das forças opostas, havia um Deus todo-poderoso. No entanto, a concepção de um Deus que reina sobre o bem e o mal não fornecia uma resposta à pergunta: de onde vem o mal? Para os Cátaros, a questão era: Como é possível que uma igreja que quer representar o poder de Deus na terra persiga e profane os cristãos?
Nos séculos XII e XIII, seus estudiosos desenvolveram uma visão dualista cujas raízes encontraram na Bíblia, especialmente no Evangelho de João. Nele é dito, em referência a Deus e à palavra divina: “Tudo foi feito por meio dele, e sem ele nada do que existe foi feito” (João 1:3).
Para os cátaros, essa frase não era dotada de sentido lógico. Por que a afirmação de que todas as coisas foram feitas por meio dele ainda encontraria confirmação em uma dupla negação?
Eles encontraram uma explicação nas escrituras gnósticas judaicas dos naassenos. Os naassenos (no século II) basearam sua interpretação da passagem do evangelho de João no texto grego original, que traduziram da seguinte forma: “Tudo foi feito por meio dele, e sem ele foi feito o nada”.
Os cátaros adotaram essa versão no seu Novo Testamento (O Novo Testamento Occitano, uma cópia do qual é preservada em Lyon) em Occitano: sem ele foi feito o nada.
Isso se tornou um dos fundamentos do seu dualismo absoluto.
Provavelmente, o mais importante texto filosófico dos cátaros é o Livro dos Dois Princípios (Liber de duobus principiis), de Giovanni di Lugio, que se tornou bispo dos cátaros de Desenzano (Lago de Guarda) por volta de 1250.
O livro dos dois princípios
O dualismo absoluto pressupõe dois princípios opostos que operam durante o processo divino de criação. Subjacentes a esses dois princípios, estão duas substâncias distintas do ser: o ser divino absoluto inteiramente bom e o nada absoluto ou não-ser. O nada já está presente no princípio da criação. Não é mau. Este cunho surge apenas posteriormente, nas almas presas à matéria e enfraquecidas devido à atração do nada,
O interrogatório de um cátaro perante a Inquisição no condado de Foix, em 1320, revela como os simples crentes experimentavam o dualismo absoluto: “Você já teve um professor que lhe ensinou os artigos de fé que acabou de confessar?” “Não, eu mesmo os descobri enquanto pensava no mundo. Pelo que percebo nele, não acredito que Deus o criou”.
O processo divino de criação
O ser absolutamente bom | O absoluto não-ser |
Emerge de sua unidade eterna e transcendente e cria as almas humanas através de sua luz. | Entra simultaneamente no processo a partir de seu vazio absoluto. Dessa forma, o tempo passa a existir. |
A partir de então, a criação divina está sujeita ao tempo |
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Através do processo temporal, as almas experimentam uma densidade diferente de irradiação através da luz divina | Em contato com a luz, o nada atua como resistência e limitação. |
| O nada atua como um poder irreal invisível apenas por meio de sua atração e, devido aos temores do homem, recebe uma existência emprestada. |
Em primeiro lugar, a matéria é vítima dessa atração, pois contém a menor plenitude do ser, e todos os elementos são levados à desordem. Com isso, muitas almas são arrastadas, se tornam confusas, se ligam à matéria e desta forma pecam.
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Assim surge um mundo do ser misto – uma mistura de ser do bem e do mal. A criação de Deus permanece imperfeita.
“Quando a luz se mistura à escuridão, faz a escuridão brilhar. Mas quando a escuridão se mistura com a luz, a luz se torna escuridão e deixa de ser luz. Ela está doente.” (Apócrifo de João)
“Compreendendo o bem”
Esta era a frase que os cátaros usavam para discretamente se dar a conhecer durante a época da perseguição.
Era a compreensão justa do bem que interessava Giovanni di Lugio em sua obra. Ele disse:
Como muitas pessoas estão impedidas de reconhecer a verdade genuína, eu decidi esclarecer aqueles que já têm certo entendimento dela. Para acalmar a minha alma, explico a verdadeira fé através do testemunho das Sagradas Escrituras com argumentos verdadeiros, após ter invocado previamente o auxílio do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Renè Nelli, “A filosofia do catarismo”, Paris,1975.
Di Lugio explica que Deus pode operar em sua criação de diversas maneiras:
Primeiramente, ele pode intensificar o seu poder de ser nas almas que o anseiam, para poderem resistir ao nada.
Além disso, em cooperação com o ser humano, ele pode transformar o mal em bem através do poder dos opostos. Sua graça pode operar, e ele pode revelar ao ser humano a verdade, a irradiação divina, o que nos evangelhos é anunciado como a Boa Nova. Deus combate no próprio ser humano quando este o serve. As orações e ritos do do ser humano são sacrifícios que Deus necessita para transformar o mal em bem. Deus precisa do ser humano para aperfeiçoar a sua criação.
E, por fim, como aponta Di Lugio, Deus ganha poder sobre o tempo através de sua eternidade, tornando possível a reencarnação para a alma humana. Por meio do sofrimento que o ser humano experimenta, ele pode tomar consciência do nada e adquirir o poder para transformá-lo.
Todas as almas humanas serão salvas um dia, segundo a mensagem de Giovani di Lugio. Até as almas dos inquisidores…
“No catarismo havia algo que não se extinguia com a pira funerária” (Jean Duvernoy).