Morte – a porta que precisa ser aberta

Morte – a porta que precisa ser aberta

Só precisamos conhecer o dia de hoje e a hora de hoje. O que as preocupações do amanhã têm a ver com o hoje? Afinal, a morte não vem amanhã: ela vem hoje. (Paracelso)

Duas amigas que se encontram por acaso, depois de muito tempo. 

– Como você está? Faz séculos que a gente não se vê! 

– Obrigado por perguntar. Morrer não é fácil…

– O quê?! Será que eu escutei direito? Você não parece estar doente…

A outra ri.

– Minha saúde está perfeita, mas há algum tempo tenho pensado na morte.

– Isso não faz sentido…Você anda bebendo? 

– Ah, minha cara, continuo lúcida, o caso é outro…

– Vamos tomar um cafezinho, então, e você me conta.

Quando o café foi servido, assunto ‘sério’ começou:

– Falei da morte porque, para viver, eu estou vendo morrer minhas velhas ideias, meus complexos, neuroses e preocupações. Percebi que todas as minhas dificuldades vêm do meu apego a essas coisas.

– Então é isso! Fico bem mais tranquila. É… somos realmente seres muito estranhos. Passamos o dia inteiro sofrendo por coisas banais. E, à noite, não conseguimos dormir! Pensamentos falam na nossa cabeça, sempre inquietos e confusos. Então, a gente muda as coisas daqui pra lá e de lá pra cá e depois se queixa de como “tudo é difícil”. Trabalhamos para comer, mas ninguém sente um prazer real em fazer isso. Falando sério: no fundo, eu me sinto como um hamster, girando sem parar na mesma rodinha. 

– É isso mesmo! Muitas vezes precisamos de uma catástrofe ou uma crise real que abale nossas bases, para que, tristes e desiludidas, nos perguntemos: “Para que serve tudo  isso?” ou “Afinal, o que estou fazendo nesta vida, aqui na Terra?”. Só a partir dessa agonia, dessa dor na alma, é que a gente começa a buscar aquele  “algo mais” que todo mundo intui existir.. 

– Concordo. Eu acho que deve, sim, haver algo parecido com o Paraíso. Vejo tanta gente definhando, adoecendo com tanta frustração e falta de sentido na vida! Muitas vezes as pessoas morrem profundamente insatisfeitas.  E para quê?

– Realmente! Isso não é de se admirar porque, mais cedo ou mais tarde, toda a nossa bela aparência, nosso sorriso presunçoso e satisfeito, cheio de vaidade, desaparecerá, mostrando que tudo é pura ilusão e que nada disso é real. Principalmente no ocidente, onde temos objetivos de vida completamente “voltados para fora”. O que vale é “poder, prestígio, prosperidade”. Veja só: quando uma centelha da eternidade bate à porta da nossa alma, da nossa consciência, o que fazemos? Congelamos! Aí vem a ansiedade e o medo do futuro e da morte – aquela que dissolve todos os nossos esforços e objetivos em um Nada que é pura treva. 

_ Pois é. Eu li em um dia desses que, como estamos acostumados a reprimir a morte e o morrer, nossas vidas só conseguem flutuar na superfície. É que nosso foco de interesse está apenas nas coisas externas, enquanto a morte é uma parte normal da ordem do universo. Ela é a garantia de que tudo o que não é adequado para o mundo infinito, mais cedo ou mais tarde vai se desintegrar e se dissolver.

– Que bom podermos conversar sobre a morte! Não é com todo mundo que posso! Veja, é inegável que as coisas terrenas são transitórias. Essa questão está sempre confrontando o ser humano consciente, que se preocupa com a questão essencial da existência. Sem a morte, a vida não tem sentido nem profundidade. Acho que até se pode dizer, de forma muito realista, que a morte é “o sal da vida”. É com a morte que a vida ganha velocidade, fica dinâmica, intensa: ela vai ganhando um valor real e, acima de tudo, dimensões muito mais profundas. É então que a gente já não consegue evitar nossos questionamentos mais palpitantes sobre “de onde viemos e por quê”. Nesse ponto, a escolha só depende de nós: se continuamos fazendo parte da multidão que vive distraída, ansiosa, sem entusiasmo, iludida e  sempre inquieta, ou se vamos nos interessar pelo contexto e pelas inter-relações da vida, pelas leis e forças que mantêm o mundo unido em sua essência.

– É isso! Nessa hora não se pode deixar de lado a Filosofia: “por que vivemos, se temos que morrer?” Quem percebe a importância dessa pergunta e não se deixa cegar e paralisar pela zona de conforto digital ocidental, sai primeiro (pelo menos interiormente) e começa sua busca. É que a “Irmã Morte”, que é a “madrinha” nos contos antigos, já está brilhando nitidamente diante de seus olhos. E em algum momento – geralmente muito em breve – essa pessoa ouve que, na verdade, não existe morte. Isso acontece conforme ela vai se tornando menos ignorante dos fatos. Einstein disse que a morte é uma “ilusão de ótica”. E isso é uma alegria enorme que só chega a nós se estivermos preparados para reconhecer o imortal, o infinito, o Espírito que está dentro de nós. É então que começamos a direcionar nossas vidas de acordo com isso, com boa vontade natural e uma boa atitude para com nossos semelhantes.

Nesse ponto da conversa, as duas percebem que estão afinadas no mesmo processo de descoberta e aprendizado e, juntas, podem elaborar melhor questões sobre isso. Começam a falar sobre imortalidade, e uma alegria inexplicável toma conta delas. Aquela que pareceu desiludida com a vida na primeira frase, agora mostra entusiasmo:  

– Não precisamos nos tornar imortais pois já somos, pelo menos em princípio! Estou vendo que você mal acredita quando me ouve falar assim. Mas, veja só: quando chamamos as transformações da vida de “morte”, percebemos que tem alguma coisa dentro de nós que realmente está morrendo, a cada instante. Milhões de células de nosso corpo morrem e são renovadas a cada segundo. Todos os processos de dissolução, por mais banais e próprios desta natureza finita, estão a serviço da vida. 

– Não posso deixar de dizer, minha amiga, que foi muito bom você começar a conversa sobre morte, mesmo que eu tenha ficado surpresa, a princípio. Estou aqui pensando que, então, quando a Bíblia diz que “a alma que pecar morrerá”, essa morte pode ser entendida como uma libertação! Significa a morte daquilo que não está em ressonância com a Luz primordial. Se formos pensar, os valores eternos que vivem dentro de nós não morrem! As forças da Luz primordial sempre estão trabalhando para nos transformar. Estamos, por assim dizer, em um forno alquímico, e é no coração que esse fogo brilha mais intensamente. Faz sentido?

– Muito sentido! Mas a questão crucial é: Será que posso apoiar esse processo? E como seria isso? A mim parece que ele aponta na direção de reconexão…Nós, criaturas de natureza mortal e material, precisamos nos reconectar com nosso Ser interior, chamado de Cristo ou Krishna, que é a parte imortal em nós. É assim que a morte passa realmente a ser bem-vinda, a qualquer momento! A morte e o morrer já não serão fantasmas assustadores, mas sim portas cheias de alegria, que nos levam para outras portas mais iluminadas ainda: portas que podem ser atravessadas, todos os dias.

– Hum humm… Eu tomo consciência de tudo o que é antigo – minhas ideias, julgamentos, opiniões. Questiono e examino tudo. Depois entrego tudo, diariamente, ao fogo que arde no meu coração, às vezes com dor, outras vezes com drama, ou mesmo com leveza e amor. Portanto, em princípio, a questão da imortalidade, sobre a qual começamos a falar, é simples: quando vai se revelando dentro da gente, ela permanece na vida prática como a principal tarefa de nossa vida. É como se todas as questões da vida fossem em nossa “caixa de correio” pelo mensageiro chamado destino ou carma.. Quando o carma nos traz algo vindo das terras misteriosas do inconsciente e ignoramos essa mensagem, chegarão mais cartas e lembretes que, por assim dizer, são cada vez mais severos de tempos em tempos, até que aprendemos a não resistir e aceitamos a mensagem que nos chega. E, quanto mais lidamos e nos interessamos por tais questões, mais rapidamente os problemas as transformam – digamos que elas praticamente “morrem na Luz”. Uma alegoria disso pode ser a vela. Logo que o pavio é aceso – pela centelha – a cera derrete na chama. Então, o que surge é luz, calor, bem-estar: vida. O único pré-requisito real é viver no “hoje em chamas”. Sim: a vida pode se tornar uma celebração diária! Então, quando meus pensamentos ansiosos atravessam meu ser como preocupações com o amanhã, na verdade não estou vivendo o presente. Estou morto-vivo! Mas “a morte não vem amanhã. Ela vem hoje!”. Ela já está aqui!!!

As duas amigas se entreolham. 

Têm a sensação de que a vida acabou de tocá-las com uma delicada advertência.

 

Referência Bibliográfica

Ruediger Dahlke, Von der großen Verwandlung – Wir sterben und werden weiterleben (Sobre a grande transformação. – Morremos e continuaremos vivendo), Crotona Verlag, 2011.

 

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Informação sobre o artigo

Data da publicação: outubro 30, 2025
Autor: Klaus Bielau (Österreich)
Foto: candle-Bild von Gerd Altmann auf Pixabay HD

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