Deus como Número

Deus como Número

Deus como número. Esse ponto de vista talvez seja curioso para você, pois Deus pode realmente ser comparado a um valor numérico?

Se ainda quisermos fazer essa comparação, a pergunta surge imediatamente: Com qual número Deus pode ser indicado?

Essas questões, é claro, não são novas. Desde o princípio, o homem lidou com os problemas do divino e buscou respostas para tais questões. A Gnose, que nos dá a sabedoria divina e universal, conseguiu dar uma única resposta a esses problemas ao longo de todas as eras. Muitos textos que foram inspirados por essa sabedoria divina, mostram evidências desse conhecimento universal e tentam dar forma a essas questões filosóficas com suas próprias palavras, apesar das diferenças culturais e temporais.

Um exemplo consta  no  livro A Gnosis Chinesa. O conceito de Deus é chamado de “Tao” nos escritos do Tao Te King de Lao Tsé. Lao Tsé afirma que, sendo Tao o solo primordial de todas as coisas, não pode ser totalmente descrito por nenhum mortal, pois ele diz:

Se o Tao pudesse ser falado, não seria o eterno Tao. Se o nome pudesse ser nomeado, não seria o nome eterno. Como não-ser, pode ser descrito como o fundamento de tudo o que existe. Como ser, é a Mãe de todas as coisas.1

Essas palavras paradoxais estão completamente alinhadas com os místicos medievais que testemunharam o que experimentaram do divino através de meras negações. Essa ciência também é chamada de “teologia negativa” e tem paralelos com o que Lao Tsé tem a nos dizer. O principal expoente dessa “teologia negativa” é Dionísio, o Areopagita, que em um de seus tratados descreve primeiro o divino por muitos nomes diferentes, apenas para negá-lo posteriormente. Dionísio também assume que Deus não pode ser capturado em um conceito e, portanto, diz que:

Deus não é nem trevas nem luz. Ele é a treva deslumbrante que cobre toda a radiação com a intensidade de sua escuridão.2

Essas palavras enigmáticas do místico medieval indicam que o divino não pode ser capturado em palavras de forma alguma. O mundo divino parece estar completamente separado do mundo das formas em que vivemos. E ainda assim, o homem, consciente ou inconscientemente, é atraído para o sobrenatural do qual evidentemente não faz parte, e tem a necessidade de conhecer essa natureza. Com essa necessidade, ele se confronta com a pergunta: como podemos descrever ou experimentar o divino?

Então, o Tao não pode ser nomeado, porque:

O Tao é vazio e, em suas radiações e atividades, é inexaurível.3

Para conhecer e realmente experimentar o divino, temos que nos “esvaziar”, temos que nos fundir em um estado de consciência completamente diferente. Lao Tsé expressa isso da seguinte forma:

Portanto, se o coração constantemente ‘não é’ — ou seja, se estiver livre de todas as aspirações e desejos terrenos — pode-se contemplar o mistério da essência espiritual do Tao.

Se o coração constantemente ‘é’ — ou seja, se estiver cheio de desejos e aspirações terrenas — só pode contemplar formas limitadas e finitas.

É por isso que o sábio se dedica ao não-fazer; ele realiza os ensinamentos sem palavras.5

O buscador de Deus, do Tao, é aconselhado a se desapegar completamente de todas as coisas materiais; a se esvaziar completamente desse modo, para que o Tao possa então se revelar a ele. No entanto, assim que alguém tenta agarrar ou compreender esse divino com a mente, o Tao se afasta novamente do lado do buscador.

Portanto, aparentemente também não devemos nos apegar a essa experiência divina, pois precisamente porque as pessoas não se apegam a ela, o Tao não as deixa. Isso se refere ao fato de que a natureza do eterno Tao não pode ser misturada com a natureza temporal de nosso mundo, pois ele se afasta do nosso lado quando tentamos apreendê-lo.

A teosofia judaica também nos mostra, como característica geral da Gnose, que o divino está separado do mundo sensorial. A gnose judaica, assim como o mundo de ideias de Lao Tsé e Dionísio, o Areopagita, mostra também uma dualidade: aqui, da mesma forma,  também o divino é um contraste com o mundo material e não pode ser experimentado de forma alguma no mundo físico. Portanto, no misticismo judaico, o divino é descrito como o Ain Sof insondável, literalmente significando “sem fim”. Essa não existência espiritual do Ain Sof é a fonte da qual toda a vida surgiu. No misticismo judaico, essa vida é representada esquematicamente pelas dez Sephiroth da Árvore da Vida, que formam o plano de criação. Em outras palavras, podemos entender o divino Ain Sof como o número 0, um nada do qual tudo se originou. Goethe também falou em seu livro Fausto:

Em seu Nada eu confio para encontrar tudo.

Levando em consideração o exposto, podemos concluir que qualquer conceito para descrever o divino é insuficiente. Para podermos imaginar o “nada divino”, o Tao ou o Ain Sof, devemos recorrer à linguagem das imagens. Essa linguagem visual deve, então, ter o mesmo significado para todos. Os números ocupam um lugar único no mundo do simbolismo, por isso optamos por essa linguagem visual.

Quando partimos de certo número, devemos perceber que os números não foram experimentados da mesma maneira ao longo de todos os tempos. Isso pode soar estranho, porque você pode pensar que a soma de 1 mais 1 dará um resultado igual para todos e em todos os tempos. Claro, isso é verdade. No entanto, dessa forma, estamos apenas usando o conceito quantitativo de um número, mas, além do valor quantitativo, também podemos experimentar o número como uma qualidade.

Em nosso tempo, o conceito qualitativo de um número foi colocado em segundo plano. Isso nem sempre foi assim. Em culturas anteriores, os antigos videntes experimentavam através de revelações o que os cientistas modernos confirmam por meio de fórmulas. Onde o homem moderno vê meras coisas, o antigo filósofo matemático via processos que ele podia converter em números, revelando-lhe, assim, os mistérios da vida. O sábio do passado distante, como vemos agora na natureza, via a mão de Deus nas estruturas numéricas.

Portanto, para Pitágoras, o matemático grego do sexto século a.C., a matemática era a base espiritual do Todo. Para ele, tudo que existe no espaço poderia ser reduzido a relações numéricas. Pitágoras também assumiu dois mundos: a natureza espiritual e a material, na qual o espírito governa sobre a matéria. Para ele, a matéria era apenas espírito congelado, cristalizado, que devia ser lentamente dissolvido, liberado por uma mudança na consciência humana.

O número 10 era importante para os pitagóricos. Eles calculavam esse número da seguinte forma: 1+2+3+4=10 e, para visualizar o todo, colocavam esses números como pontos em um triângulo. Um ponto no topo do ápice do triângulo, dois pontos abaixo deste, três pontos novamente abaixo disso, e finalmente, na base do triângulo, os últimos quatro pontos.

Com os números de 1 a 4, eles podiam compreender o Todo em sua totalidade. Todo o desenvolvimento da criação, de acordo com essa visão, procede do 1, passando pelo 2, pelo 3 e então pelo 4, que em sua totalidade formam a plenitude do dez. Já tocamos nessa plenitude criativa com as dez Sephiroth da Árvore da Vida, que representam a criação do Todo. As dez Sephiroth relacionam-se com as dez palavras da criação de Gênesis, que começam com:

E Deus disse…6

O mundo como o conhecemos é um mundo de divisões, um mundo de contradições. Isso por si só é um fato muito importante. Não podemos imaginar nada no mundo físico que não possa ter seu oposto. Esse contraste, que na verdade esconde o número dois, é lindamente representado no Pentateuco judaico, que compreende os primeiros cinco livros do Antigo Testamento. A primeira palavra de Gênesis no texto hebraico começa com o beth, a segunda letra do alfabeto com valor numérico de dois. Portanto, a criação não começa com o um, mas imediatamente com o valor numérico qualitativo do dois! Na verdade, com essa imagem em mente, podemos concluir que o valor qualitativo do número um não está disponível em nosso mundo físico. Vivemos em um mundo onde o dois ou o múltiplo do número dois reina! Portanto, para os pitagóricos, o número quatro bastava para designar o mundo da natureza física: pois 4 é 2 ao quadrado, o limite absoluto desta natureza! Ao contrário do 2 ou do 4, o 1 permanece, e essa unidade não é desta natureza, mas evidentemente pertence a uma outra ordem. Além disso, por exemplo, a última letra do alfabeto hebraico tem um valor numérico de 400 (os zeros são secundários), e qualquer coisa acima de 400 não pertence à natureza física! Não há letras ou sinais para o 500; então estamos de volta ao mundo do silêncio. A jornada do homem na matéria, portanto, acabou.

Agora podemos imaginar melhor essa unidade como a mônada, a forma esférica, que, ao contrário de outras formas, consiste apenas em 1 face. Os gnósticos experimentam esse plano único, essa mônada, como a força silenciosa ao fundo, que é imóvel e da qual tudo surgiu. Portanto, os antigos videntes viram a mônada, a unidade, o um, não como um número, mas como o gerador de números, do qual, como sementes, tudo surgiu.

A primeira manifestação do mundo divino, que agora podemos associar ao número 1, é uma atividade, uma radiação, uma emanação do Ain Sof. É como um raio de luz, um chamado divino de outro mundo silencioso que nos convida a encontrá-lo. Essa emanação do Nada insondável é a primeira letra do alfabeto hebraico, o Aleph, e é como uma gota, uma semente que quer encontrar um parceiro na terra. Essa gota divina quer ser conhecida e refletida puramente em sua forma monádica, inequívoca. Afinal, o Amor é criação, e a criação é Amor. Deus, em seu amor, esforça-se para ser reconhecido e conhecido aqui. Ele nos chama do Nada divino, e nesse mesmo momento o Amor gera sua contraparte terrestre: os dois se enfrentam.

A gota celestial só pode ser espelhada na terra através da atividade do homem. Ele deve tornar o espelho refletor de sua alma tão claro que o divino, em sua mais pura forma, seja refletido na terra por meio dele como uma divina unidade.

Quando sua alma não está presa aos movimentos terrenos, o espelho de sua alma está livre de qualquer mancha, e a luz divina é refletida em seu esplendor. Isso é maravilhosamente representado pela primeira letra hebraica Aleph, com o valor numérico de 1.

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Infelizmente, na maioria dos casos, essa gota divina do incognoscível Ain Sof encontra na terra um participante que pode formar apenas uma tênue sombra da sublime unidade divina. O espelho da alma ainda está muito embaçado devido ao foco terreno e a luz não pode penetrar nas profundezas da alma. Então, a luz da unidade sobrenatural no mundo físico torna-se uma multiplicidade de formas, um mundo dualista no qual reinam os opostos. A gota monádica então encontra seu reflexo apenas em um estado fragmentado (veja a segunda figura da gota). A cessação desse estado de ruptura só poderá ocorrer quando todo o sistema humano descansar.

Lao Tsé diz a esse respeito:

Quem pode purificar para a paz as impurezas de seu coração?

Quem pode nascer gradualmente no Tao pela prática prolongada da calma? [7]

A fragmentação da unidade divina, através do tumulto na alma humana, é um fato expresso em muitos mitos. O mito egípcio de Osíris e Ísis é um exemplo claro disso. Ele conta como Osíris, representante do verdadeiro eu do homem que provém do mundo divino, concentra-se exclusivamente no espiritual. No entanto, ele tem um irmão, Seth, a contraparte sombria que não se concentra no espírito, mas na matéria. Seth, também chamado de Typhon, representa a tendência do homem de se lançar na realização de seus desejos. Ambos os irmãos poderiam ter sido parceiros equilibrados se Osíris tivesse controlado seu irmão Seth. O espiritual teria então governado o mundo dos sentidos, que o teria obedecido. Mas a história é diferente. O mito egípcio conta que Seth mata seu irmão, divide seu corpo em pedaços e os espalha pelo mundo. Essa imagem é paralela à poderosa gota divina, a mônada projetada no mundo material em forma fragmentada e se desintegra, por assim dizer, em inúmeras partículas.

Passamos a conhecer a esfera ou mônada como a unidade divina, que se eleva acima da fragmentação da natureza dualista. Não é por acaso que na língua hebraica os termos “Deus”, “Amor” e “Unidade” têm o mesmo valor numérico. Esses conceitos estão irrefutavelmente interligados porque Deus é Amor, é Um. Podemos ainda acrescentar um quarto conceito: verdade. No nosso mundo, o significado do conceito de “verdade” é diferente para cada pessoa. Porém, partindo de uma hipótese de trabalho e tomando a mônada como símbolo do Tao, podemos concluir por meio de um exemplo simples que a unidade divina é igualmente vivenciada por todos. Para provar isso, devemos apelar à sua imaginação. Imagine que estamos todos juntos numa esfera imensa, a mônada. Todos, onde quer que estejam, terão a mesma percepção desse globo. Mesmo que nos coloquemos fora dessa imensa e grande esfera, todos terão a mesma percepção! Portanto, a mônada, o plano único da forma esférica, o número 1, é o símbolo por excelência da Divindade que se expressa em nosso mundo, como a primeira emanação.

Esse único plano, o número 1, é diametralmente oposto ao número 4 da natureza física. Também para os pitagóricos, o 1 formava a fronteira para o mundo transcendental que não pode ser experimentado no mundo material do 4. Embora essas duas naturezas diferentes não possam ser misturadas, rapidamente comete-se o erro de pensar que o divino deve estar muito distante de nós, humanos, o 4. No entanto, nada poderia estar mais longe da verdade! Ele está mais perto do que mãos e pés, só que ainda está latente em nós! Ainda precisa ser ativado.

O enigma desse aparente paradoxo só pode ser resolvido tornando o espelho da nossa alma tão claro que seja capaz de receber e refletir o divino em sua verdadeira essência. Como tornamos nossas almas receptivas a essa inspiração divina que vem da outra natureza? Para conseguir isso, Lao Tsé refere-se ao princípio Wu-Wei, que significa “não fazer”, o desapego deste mundo. Essa é a chave de todos os magos gnósticos, que nos leva para fora do mundo do “fazer”, do ser, para o mundo do não-fazer, do não-ser. Quando um ser humano é capaz de usar essa chave, então, através de tal ato, toda a natureza humana é retrabalhada e elevada para outra dimensão. Confirmam-se então as palavras gnóstico-mágicas de Lao Tsé, que, de um passado distante, nos fala de forma inspiradora:

O céu e a terra se uniriam e fariam cair um suave orvalho, e as pessoas entrariam em harmonia espontaneamente, sem necessidade de serem avisadas.

Quando Tao foi distribuído, recebeu um nome.

Com esse nome é preciso saber se conter.

Quem consegue se conter não correrá perigo.

Tao será espalhado por todo o Todo. Todas as coisas retornarão ao Tao, como os riachos das montanhas, que retornam aos rios e depois ao mar.8

 

Referências:

[1] Petri, Catharose de e Rijckenborgh, Jan van – A Gnosis Chinesa – Comentários sobre o Tao Te King, capítulo 1, Editora Rosacruz, Jarinu, 2006

[2] A Teologia Mística de PSEUDO-DIONÍSIO, O AREOPAGITA

[3] Ibidem, capítulo 4

[4] Ibidem, capítulo 1

[5] Ibidem, capítulo 2

[6] Gênesis 1:3

[7] Ibidem, capítulo 15

[8] Ibidem, capítulo 32

 

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Informação sobre o artigo

Data da publicação: fevereiro 28, 2024
Autor: Benita Kleiberg (Netherlands)
Foto: Lucas Kapla on unsplash CCO

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